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Estranha: Reflexões psicanalíticas sobre o processo migratório

  • Foto do escritor: Gabriela Costa
    Gabriela Costa
  • 30 de out.
  • 4 min de leitura

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O que se faz diante da perda? Uma vez ouvi de uma mãe, que pensava na possibilidade de perder o filho, que a única saída possível seria deixar de ser quem se é, ser outra coisa que não aquilo que costumava ser para que, então, a dor fosse de outra pessoa. A única saída estaria no reinventar-se. 

O que se faz, então, diante da perda de si? E quando aquilo que se é deixa de ser sem aviso? O luto que se direciona àquilo que ainda vive, que segue. Como lidar com a perda daquilo que não morreu? 

É diante desse luto que o sujeito se depara na imigração, sobre a perda de referências, de status, de onde se viveu, da comida que se comeu, dos lugares, das coisas, das pessoas que, continuam lá, mas sem você. A perda do conhecido. A perda. Quem se é quando tudo aquilo que se conhece não está mais lá? Inclusive, você mesmo. 

Berta e Rosa (2005) argumentam que diante da sensação de perda e da ausência de referenciais identitários, surge um estágio inicial que pode ser compreendido à luz do conceito de angústia. A angústia aponta para aquilo que o sujeito não consegue articular em significantes, um trajeto que perpassa o estranho país do Outro, citado por Fuks (2000), e que encara o Real, aquilo que escapa à simbolização. Lacan (1963), ao falar da angústia, aborda o sentimento de desamparo inicial e descreve o encontro com situações que o evocam como uma fonte dessa, um período em que o sujeito enfrenta dificuldades para se localizar, experimentando um sentimento de estranheza similar ao conceito de "unheimlich" de Freud (1919). 

O abalo sobre a identidade, tomada aqui como a ficção de si, é uma das marcas que cravam a experiência migratória. A dificuldade em se localizar diante de um novo espaço que não é só físico, mas também uma posição subjetiva, aponta para a necessidade da elaboração do luto em face do perdido, algo entre a angústia e o desejo e a tentativa de reconstrução de sua imagem, uma recomposição do lugar onde é possível ver-se amável para o Outro (ideal do eu). 

Nesse contexto, o sujeito enfrenta o desafio de elaborar o luto reconstruindo não apenas essa imagem de si, mas também seu lugar no mundo. Composição não apartada da realidade, reconstruir-se no mundo esbarra naqueles que o dividem com você. Uma nova terra, um novo laço e relações de poder que, inevitavelmente, como já dizia Foucault (1991), nos vemos entrelaçados. Nessas relações, o imigrante é o outro visto como objeto, como o estranho e, muitas vezes, como a ameaça. Aqui temos o outro como a diferença, ou melhor, aquele que é diferente de nós. Badiou (2001) traz uma reflexão sobre quem são os outros que são aceitos e quem são aqueles que não têm esse direito. Para o autor, o respeito ao diferente só é aplicado se esse diferente se assemelha a uma identidade ideal preestabelecida, o outro só é aceito se ele for um "bom" outro, o que, em outras palavras, seria: aquele que é mais parecido com quem tem o poder no discurso. Assim, o corpo do imigrante é tido como descartável. Nessas relações de dominação, esse corpo está ali temporariamente, uma presença autorizada, mas passível de revogação a qualquer instante.  Nesse contexto, as intersecções de categorias como raça, gênero e classe, por exemplo, não podem ser ignoradas. O excesso do real, que expõe o sujeito ao traumático no processo migratório, ganha outras dimensões quando somadas a outros tipos de violências. 

A clínica, por sua vez, não pode ser mais um espaço de reprodução dessa dor, pelo contrário, precisa ser possibilidade de ressignificação dela. Alencar (2006), traz uma crítica a diagnósticos psicológicos e psiquiátricos nas instituições de saúde que tendem a ignorar contextos sociais e a reverberar discursos que cercam esses sujeitos e produzem um estado de negação da perda, podendo ocasionar efeitos de estancamento da dor e impedimento do luto. Não proporcionar um espaço seguro na clínica para a elaboração do luto e dessas dores, é a repetição daquilo que já lhes é negado socialmente, é um silenciamento que impede de restituir um campo mínimo de significantes que possam circular, podendo dar sentido à sua experiência e abrindo espaço para esse sujeito se localizar. 

Aqui falo sobre imigração, mas também sobre todos os silêncios que reconhecemos, todos os que no construto social são descaracterizados de si e postos como descartáveis. A clínica, que eu acredito, parte de discussões como essa. A clínica é lugar de possibilidades, de tantos nomes, tantos estados, tantos sotaques, traz consigo a errância, os contrapontos, as diferenças, os estranhos e a viabilidade da fala, o não silenciamento. Além disso, também tem em si o encontro, ou melhor, um bom encontro. Os bons encontros, para Espinosa (2009), são aqueles que geram potência, vida. Não seria, então, o que estamos fazendo aqui?


Referências:

ALENCAR, S. L. de S. Uma experiência em Saúde Pública em São Mateus: algumas reflexões psicanalíticas sobre intervenções em situação de luto coletivo. Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental, Belém, PA, set. 2006.

BADIOU, Alain. Ethics - an essay on the understanding of evil. London: Verso, 2001.

BERTA, S. L.; ROSA, M. D. Angústia e luto no exílio político. Revista Textura, São Paulo, ano 5, n. 5, p. 52-56, 2005.

ESPINOSA, Baruch. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

FOUCAULT, Michel. Discipline and punishment: The birth of the prison. Londres: Penguin Books,1991.

FREUD, Sigmund. O estranho, 1919. In: ______. História de uma neurose infantil. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 233-270. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 17).

LACAN. Jacques. (1962-1963). O seminário. Livro X. A angústia Publicação interna da Associação Freudiana Internacional, Recife, 2002.

 
 
 

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